Música (alma) e Literatura
Por Marcelo Moraes Caetano (09/05/2009 16:12:00)
A relação entre música e literatura se dá, como a
que há entre diversas outras artes umas com as outras, de formas múltiplas,
muitas vezes complementares, outras vezes apenas paralelas. É fácil e oportuno,
por exemplo, à guisa de preâmbulo, traçarem-se correlatos semânticos entre a
literatura e a pintura, a literatura e o teatro, a literatura e o cinema, a
literatura e a dança e assim por diante.
Falar da comparação entre música e literatura,
entretanto, parece tarefa um tanto ou quanto mais árdua, ou menos precisa. Isso
porque o significante da música e o da literatura diferem, já na gênese,
diametralmente. A literatura dispõe da evocação sígnica da palavra, que grafa
no cérebro humano um sem-número de significados provenientes dessa sua
propriedade imanente – o som, a escrita, seja lá o que for que provenha da
palavra. A música, por seu turno, é expressão muda no que tange aos
significados lexicais. A frase musical é a plasticidade sensorial no tempo – no
que se torna análoga (não semelhante, mas análoga) à música –, plasticidade
esta, porém, que, a priori, não quer e não necessita a interface imediata que a
semântica das palavras propicia.
A música é semântica, sim, mas semântica mediata,
requer, mais do que a literatura, da cooperação psíquica do interlocutor. Um dó
maior não terá a mesma força-efeito em duas pessoas. Nem terá a mesma
força-efeito numa mesma pessoa em dois momentos diferentes de sua vida. E, por
mais que uma metáfora com palavras seja polissêmica e aberta a interpretações e
recepções diversas também, está claro que “uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma
rosa...”
Na música não há uma rosa. Há dissonâncias, pausas,
assonâncias, intervalos, dominantes, repousos, marchas, forças, tons, modos,
clímax, inquietações, paz, conflitos, soluções... tudo isso abrindo mão das
palavras, recorrendo a significantes, portanto, quase que cem por cento sob
poder do receptor.
Dado esse brevíssimo cotejo entre as duas artes em
questão, resolvi, para este ensaio, falar em alguns aspectos em que, no
entanto, música e literatura se tocam amigavelmente. Não que uma precise da
outra. Antes diria eu: são casos em que uma quis a outra. É bem diferente. Não
se trata da área da necessidade, senão, sim, da área do querer, do bem-querer.
Falar em óperas, por exemplo, parece-me o primeiro,
mais inequívoco e profícuo campo da comparação. Isso porque a ópera é música e
é palavra simultanemente. Há, pois, um, por assim dizer, eixo hachurado entre
as duas artes, que chegam a ser, portanto, interdependentes. Em primeira
instância, por isso mesmo, falarei da ópera e das canções como intersecção música-literatura.
Depois disso, entretanto, me proporei falar da empreitada de se aliar a música
a idéias literárias - só que desprovidas da ferramenta básica da literatura: a
palavra. Muitos fizeram isso, mas atribuo a primogenitura oficial (e tentarei
mostrá-lo) ao magnífico Franz Liszt.
Começando pela ópera, falar nela, quando se fala no
intercurso entre a literatura e a música, é apontar, dentre uma ontologia
demasiado vasta, exemplo concreto em que as duas artes se amam. Ocorre-me, por
exemplo, a famosa “Carmem”, de Bizet, que foi inspirada, poucos sabem, no
romance de Prosper Merimée, que narra, como diz Zito Baptista Filho (1987: 60)
“uma história mais longa do que a paixão de Carmem e Don José. Ele [Merimée]
narrou a história de Don José Lizarrabengoa, que se envolve numa luta sangrenta
em sua região natal, na província basca, e vai reaparecer na Andaluzia como Don
José Navarro; refaz sua vida como soldado no regimento dos Dragões de Alcalá,
sediado em Sevilha, e aí então conhece Carmem, a cigana, sendo novamente
conduzido à marginalidade e à tragédia final”. A arquitetura do libreto da
ópera de Bizet, no entanto, coube aos hábeis Halévy e Meilhac, célebres,
posteriormente, pelas bem-sucedidas empreitadas nas óperas e operetas do também
francês, como Bizet, Jacques Offenbach, que era um ídolo pop de sua época.
Nas terras da Santa Cruz, o nosso Brasil, posso
citar o caso do grande Francisco Mignone, que adaptou a obra de Manuel Antônio
de Almeida, “Memórias de um sargento de milícias”, sob libreto de Humberto
Mello Nóbrega. A ópera de Chico Bororó (pseudônimo dileto de Francisco Mignone)
se chamou simplesmente “O sargento de milícias”, e foi posta a lume no fim da
década de 70 do século XX.
Ainda sem sair do glorioso terreno da dramaturgia
operística, podemos citar aqueles autores que tinhas predileção quase obsessiva
por determinado escritor. É o caso do gênio de Salzburgo, Mozart, que, amiúde,
recorria a Lorenzo da Ponte para criar o texto (subjacente?) às suas imortais
composições. Permanecendo nas searas austríacas, o dramaturgo Hugo von
Hofmannsthal, que além de escritor tem também o mérito de ter sido um dos
mecenas do Festival de Salzburgo, foi, desde jovem, eleito preferido para dar
palavras literárias à por si só grandiloquente música do mestre Richard
Strauss. “Arabella”, “Ariadne em Naxos”, “O cavaleiro da Rosa”, “Electra” são
obras que resultaram dessa parceria genial entre o músico e o escritor
(GAMMOND, 1986: 184 e ss.).
Verdi, talvez o patriarca da ópera enquanto tal,
também recorreu diversas vezes à verve dramática de ninguém menos que William
Shakespeare. “Otelo”, “Macbeth”, “Falstaff” estão aí para comprová-lo.
O romântico alemão Goethe, por sua vez, tem sido,
há muito, verdadeiro inspirador de várias obras musicais, tanto com seu famoso
e celebrado “Fausto”, quanto com seus outros poemas mais curtos. Exemplificam
isso, brevemente, a famosa ópra “Fausto”, de Gounod, “Mefistófeles”, de Boito,
e “A danação de Fausto”, de Berlioz. (A “Valsa Mefisto”, de Liszt, é
indiretamente baseada na famosa história do doutor que engana o diabo, de
autoria de Goethe, pois na verdade ela foi baseada na versão de Nikolaus Lennau
sobre a narrativa original. Aliás, como não mencionaríamos, aqui, a versão
brilhante e dialógica que Thomas Mann, anos depois, deu ao Fausto” primitivo de
Goethe, em seu “Doktor Faustus”?) Ainda Schubert, “o maior dos poetas que a
música já conheceu”, nas palavras de Liszt, produziu uma série de canções (em
alemão, Lieder), baseadas em escritores como Heine, Shakespeare e – Goethe. É
deste último o famosíssimo “Rei dos Elfos” (“Erlkönnig”), que foi o guindaste
definitivo do espírito de Schubert aos ecúmenos da genialidade musical. Eu
traduzi para o português essa maravilha em meu livro de poemas “Cemitério de
centauros” (Senai, 2007), que tem prefácio dos magníficos Antonio Carlos
Secchin, Arnaldo Niskier e Marcos Almir Madeira. Gostaria de deixar registrado
que, nessa minha tradução para meu idioma pátrio, mantive de tal forma a
métrica linguística do “Erlkönnig” original, que, caso se queira, a versão em
português caberá perfeitamente dentro do fraseado musical composto por
Schubert. Falo isso não como bazófia, mas para demonstrar que minha
preocupação, neste caso e nos demais em que música e literatura estão aliadas,
é imensa. Há pouco tempo, fiz a tradução da “Berceuse” de Jocelyn (de Benjamin
Godard), e a mesmíssma preocupação de manter a métrica original (dessa vez do
francês ao português) se me deu.
A título de ilustração, coloco a primeira estrofe
da obra de Goethe (musicada por Schubert), para que se compare que, na minha
tradução, as sílabas musicais em português seriam perfeitamente compatíveis
àquelas que o mestre de Viena compôes em seu famoso Lied.
Erlkönig
Johann
Wolfgang von Goethe
Wer
reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es
ist der Vater mit seinem Kind;
Er
hat den Knaben wohl in dem Arm,
Er
faßt ihn sicher, er hält ihn warm.
O Rei dos Elfos
Versão: Marcelo Moraes Caetano
Quem cavalga à noite, tarde, vindo ao vento?
É o pai trazendo seu precioso rebento.
Ele o traz tão profundamente no braço...
Mantendo-o seguro, num doce mormaço!
(CAETANO, 2007: 31)
Coube a Liszt a primogenitura, como eu já disse, de
dar à música tons pictóricos, aproximando-a da pintura, mais até que da
literatura. Seus “Poemas sinfônicos” traduzem isso com inquestionável maestria.
E é curioso que, para comparar a música à pintura, no entanto, o mestre húngaro
tenha usado o substantivo “Poemas”, em vez de, por exemplo, “Quadros” ou
"Cenas", como fizeram outros compositores, como Schumann, com suas
famosas "Cenas infantis", ou Mussorgsky, com sua virtuosíssima peça
para piano ou orquestra "Quadros de uma exposição". Ou seja, pode-se
inferir que, na alma do grande magiar Liszt, música, pintura e literatura se
interpenetram de tal sorte, que a designação dessas artes pode ser feita quase
que de modo indistinto. Assim ficou claro em sua escolha terminológica.
Por falar em Liszt, que, como muitos sabem, é meu
compositor dileto, é interessantíssimo o cotejo entre a obra do grego Nikos
Kazantzakis, “O pobre de Deus”, que é a história romanceada da vida de São
Francisco de Assis, e o poema musical de Liszt intitulado “São Francisco de
Assis pregando aos pássaros” (LISZT: Budapeste, Editio Musica). Nikos ficou
famoso por sua obra “Zorba, o grego”, levada ao cinema nos anos 60, tendo como
papel título Anthony Quinn. Interessante o cotejo, como dizia eu, diga-se em
tempo, até pelo fato de que, neste caso, a obra do escritor grego veio à luz do
mundo muitos anos após a escrita da peça do compositor húngaro.
(Interessantíssimo, também, saber que Kazantzakis – que escreveu, além da vida
de São Francisco de Assis, obras como “Sodoma e Gomorra”, “O Cristo
recrucificado”, “A última tentação”, de epifanias evidentemente religiosas - se
dizia materialista histórico, marxista, ateu, chegando a ser ministro do
governo socialista instituído na Grécia após a famosa resistência frontal e
cabal daquele país contra a ocupação nazista.)
No entanto, como nessas coincidências que o destino
teima em atribuir ao acaso, há paralelos inegáveis nos dois trabalhos: o de
Liszt e o de Kazantzakis. Não apenas – o que seria óbvio e desnecessário – pelo
fato de as temáticas serem idênticas, mas sobretudo pelo timbre igualmente
poético que se deu à figura central das duas obras-primas: o Arlequim de Deus,
São Francisco. Nos dois, por assim dizer, “textos”, Francisco é mostrado não
apenas no estereótipo que o senso comum lhe impingiu, qual seja o de figura
frágil, debilitada, de ideologia quixotescae até um tanto insana e
inconsequente.
Não.
Nas obras – literária e musical – pode-se antever
um Francisco profundamente delicado, lúcido, mas igualmente incisivo nas horas
em que tal atitude era forçosa. Um homem que não recuava diante das
dificuldades, um Santo que sabia dançar e divertir-se desprovido de qualquer
sentimento de culpa judaico-cristã, uma pessoa que não se atirava às cegas
“contra moinhos de vento”, mas que sabia para quê e para quem estava lutando, e
que edificou sua luta altamente guerreira dentro de um espírito de harmonia com
todos os elementos da natureza, sem deixar nada de fora – nem mesmo o diabo,
numa atitude quase mefistofélica... pois como ele mesmo diz, em “O pobre de
Deus”, em diálogo com seu irmão, apelidado de “Leão”:
“- Não percas a confiança, meu filho – respondeu
[Francisco] acariciando-me a cabeça. Procura dominar-te, e se o Diabo te
fisgou, nada temas, a porta se abrirá, e vocês dois entrarão no céu.
- O Diabo trambém? Como o sabes, Irmão Francisco?
- Meu coração se abre a todos e a todos acolhe de
bom grado, Irmão Leão. Penso que o Paraíso procede como ele.”
Essa força e fé inabalável na Misericórdia de Deus
está presente, na obra de Liszt, na seção intermediária, em que os trinados
longos da multidão de pássaros da música dão lugar a uma crescente onda de
força e vigor que começa com notas em pianíssimo e vai, pouco a pouco, mas sem
retroceder, tal qual o próprio Francisco de Kazantzakis, transformando-se em
oitavas potentes, que chegam ao fortíssimo, em arpejos especialmente brilhantes
e vastos, generosos e enraizados, sem perder o equilíbrio e a majestade que
provêm de tudo aquilo que é simples.
Em seguida, o Francisco de Nikos Kazantzakis age da
seguinte maneira:
“Virou-se para os pássaros, inclinou-se, com os
braços bem abertos, e começou a pregar:
- Meus queridos irmãos: Deus, pai das aves e dos
homens, muito os ama, como bem o sabem. E é em sinal de agradecimento que
erguem o bico ao céu a cada gota de águia que bebem. Na hora em que o Sol vem
bater em seu peito, pela manhã, é para louvar o Senhor que saltitam de ramo em
ramo, a graganta cheia de canções, rendendo graças à Luz, às árvores verdes e à
alegria. Em seguida, voam bem alto no firmamento, para chegar mais perto Dele e
serem ouvidos. E quando as fêmeas chocam os ovos que enchem os ninhos, Deus se
transforma num pássaro e se põe a cantar para iludir o seu cansaço.
Os pombos que passavam naquele momento, ouvindo a
voz de Francisco, desceram e se atulharam a seus pés. Um deles foi pousar-lhe
no ombro, arrulhando. Francisco abaixava-se cada vez mais, agitando as mangas
do hábito como se fossem asas. Sua voz cantava, quase se convertia em trinados.
Dir-se-ia que ele se esforçava por se metamorfosear em ave. (...)
Agora eram as andorinhas que chegavam,
enfileirando-se em cima da sebe ou na beira do telhado da igreja. De asas
fechadas, espichavam o pescoço e ouviam. Francisco saudou-as. (...)
- Bom dia, irmãs andorinhas, que todos os anos nos
trazem a primavera nas asas compridas (...) Pousadas nas telhas das casas
cobertas de neve, ou esvoaçando de galho em galho desfolhado, espicaçam o
inverno com os bicos afiados, até obrigá-lo a fugir. E quando vier o Juízo
Final, serão vocês, minhas andorinhas, que á frente de todos os seres alados,
até mesmo dos anjos com as trombetas, revoarão os cemitérios, chilreando sobre
os túmulos, anunciando a Ressurreição. Os mortos, então, hão de ouvir e saltar
entre os tufos de camomila, saudando a eterna primavera.
As andorinhas batiam alegremente as asas, os pombos
arrulhavam. Os pardais se aproximaram e começaram a bicar com doçura o hábito
de Francisco. E ele, erguendo a mão sobre suas cabeças, fez o sinal-da-cruz e
os abençoou.” (KAZANTZAKIS: 165)
Impossível, realmente, não se visualizar, na música
de Franz Liszt, as palavras futuras de Nikos Kazantzakis.
A arte tem esses paradoxos: “São Francisco de Assis
pregando aos pássaros” há de ter sido inspirado em “O pobre de Deus”, ainda que
a sequência cronológica negue essa inspiração pelo simples fato, tão tolo e
comezinho, de “O pobre de Deus” ter sido composto muitos anos depois do poema
de Liszt “São Francisco de Assis pregando aos pássaros”.
Trata-se apenas de uma questão de sensibilidade e
educação artística, não de lógica matemático-cartesiana... A música, como a
literatura, provém da alma. E o seu tempo é outro.
REFERÊNCIAS:
CAETANO, Marcelo Moraes. Cemitério de Centauros,
Rio de Janeiro: SENAI, 2007
FILHO, Zito Baptista. A ópera. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1987
GAMMOND,
Peter. The Illustraded Encyclopedia of opera: a comprehensive guide to over 500
operas. London: Peerage Books Ltd., 1986
KAZANTZAKIS, NIKOS. O Pobre de Deus. São Paulo.
Círculo do Livro, sd
LISZT, Ferenc. Années de Pélerinage. Déuxieme année:
Italie. Published by Sulyok
Imre, Mező Imre. Budapest: Editio Musica, sd
Marcelo Moraes Caetano é Professor de Português e
Literatura; Gramático; Crítico literário; Tradutor de Alemão, Inglês, Francês e
Italiano; Estudioso de Latim, Grego e Mandarim. Escritor, jornalista e poeta,
com 12 livros publicados, e várias premiações (Academia Brasileira de Letras,
ONU, UNESCO, Fundação Guttenberg, XIII Bienal Internacional de Literatura do
Rio de Janeiro, Litteris, Sesi, Firjan). Especialista em Educação pela
Universidade Federal Fluminense. Mestrando em Estudos da Linguagem pela PUC-RIO.
Pesquisador com dedicação exclusiva pelo CNPq. E-mail:
mmcaetano@hotmail.com
Comentários
Postar um comentário